Como 'cambistas de bets' movimentam mercado ilegal milionário e oferecem apostas até para menores
Driblando as restrições da regulamentação, um universo de apostas ilegais movimenta centenas de milhões de reais no país, permitindo acesso a qualquer um. Proliferação dos apps de bets é fenômeno relativamente recente no Brasil
Bruno Peres/Agência Brasil
À sombra do mercado legal de apostas esportivas, existe hoje no Brasil um universo de apostas ilegais que é alvo de uma CPI e que movimenta centenas de milhões de reais graças aos “cambistas de bets”.
Cambista é normalmente quem vende ingressos para eventos, como shows e partidas esportivas, ganhando em cima disso. No mercado das bets, os cambistas intermediam apostas para as casas ilegais e são uma alternativa para quem é proibido de apostar pelas vias legais, como menores de idade.
As bets ilegais contam com os cambistas para receber as apostas e pagar os prêmios, e os cambistas recebem uma comissão por cada transação. E eles usam as redes sociais para anunciar seus serviços e as melhores ofertas.
No Facebook, grupos com dezenas de milhares de pessoas oferecem apostas clandestinas durante todo o dia.
Os cambistas atraem apostadores oferecendo prêmios maiores do que as casas legalizadas e bônus proibidos.
No Instagram, páginas com milhares de seguidores também oferecem os serviços. Em alguns casos, usando até nomes semelhantes aos de casas legalizadas.
As casas clandestinas promovidas pelos cambistas oferecem, por exemplo, um bônus de boas-vindas. A oferta de um valor inicial disponível para os apostadores foi vedada pela lei.
A BBC News Brasil encontrou centenas de anúncios oferecendo apostas clandestinas nas plataformas da Meta, empresa que controla o Facebook e o Instagram.
Na biblioteca de propaganda da empresa, que disponibiliza o conteúdo publicitário promovido em suas plataformas, só um destes perfis, o Cambistas 24 horas, tinha 110 anúncios veiculados.
Após a reportagem questionar a Meta a respeito, as publicidades deixaram de aparecer nos arquivos.
Em resposta, a empresa afirmou que os “anunciantes que desejam promover jogos de azar ou jogos online precisam solicitar permissão por escrito da Meta e fornecer provas de que as suas atividades estão licenciadas por um regulador ou estabelecidas como legítimas nos territórios nos quais desejam veicular esses conteúdos”.
Na maioria das vezes, as redes sociais servem de chamariz para outro ambiente digital onde as apostas são efetivamente concretizadas por meio dos cambistas, como sites clandestinos e aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram.
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Uma pesquisa recente do Ministério da Justiça de São Paulo (MJSP) mostrou que 10,5% dos adolescentes entrevistados apostaram no último ano.
Com as restrições colocadas às casas regularizadas, as bets clandestinas e os cambistas se tornam a única maneira de adolescentes continuarem a jogar.
Pela lei, além de menores de idade, técnicos de futebol, jogadores, árbitros e membros de órgãos de regulação são proibidos de apostar.
As empresas também precisam impedir que uma pessoa comprometa sua renda com apostas ou que viciados em jogo apostem.
O governo busca também realizar um cadastro que incluirá quem for proibido de apostar por decisão judicial.
Em abril, o governo anunciou que pretende proibir beneficiários dos programas Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) de apostarem em bets.
As casas de apostas também costumam restringir apostas de clientes quando são observadas atividades suspeitas, como usar uma estratégia conhecida como “arbitragem”, em que apostas são feitas em casas diferentes para lucrar com qualquer resultado.
Desde que o mercado regulado de apostas esportivas começou a operar no Brasil em 1º de janeiro deste ano, as mais de 150 casas de apostas autorizadas a funcionar movimentam entre R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões todo mês, de acordo com uma estimativa recente do Banco Central.
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O subsecretário de Monitoramento e Fiscalização do Ministério da Fazenda, Fábio Macorin, diz que a busca por caminhos ilegais para contornar as restrições impostas pela regulamentação já era esperada.
Mas diz que isso vem preocupando bastante pelas somas movimentadas de forma clandestina.
Apenas nos primeiros dois meses de 2025, o Brasil registrou movimentação de aproximadamente R$ 350 milhões em apostas ilegais, segundo informação divulgada pelo site Aposta Legal. O levantamento identificou mais de 30 milhões de acessos a esses sites.
“As regras são feitas para proteger os consumidores, mas há casos em que os impedimentos podem reforçar o mercado ilegal”, afirma Macorim.
No Facebook, grupos com dezenas milhares de pessoas oferecem apostas clandestinas durante todo o dia
Reprodução
A questão não é uma exclusividade do Brasil. Com uma regulamentação bastante rígida aplicada há anos no setor, a Argentina observou uma disparada na atuação dos chamados “cajeros”, que cumprem a mesma função dos cambistas no país.
A limitação de acesso aos sites regularizados vai além da limitação de idade. As casas de apostas também só podem ter clientes na região do país onde têm autorização para funcionar, por exemplo.
Em 2024, uma pesquisa do Unicef, fundo das Nações Unidas para infância e juventude, mostrou que 8 entre cada 10 jovens da Argentina apostaram ou conhecem alguém que tenha feito uma aposta esportiva ao longo daquele ano.
Destes, 30% disseram quem usaram cajeros ou intermediários para fazer sua aposta.
Em setembro do ano passado, o suicídio de um jovem de 22 anos que havia começado a apostar aos 17 e gastou US$ 140 mil (R$ 830 mil) com o jogo chocou a Argentina.
“É algo que está totalmente naturalizado no país, especialmente entre os homens. A idade média de início nas apostas está perto dos 13 anos”, explica Lucía Fainboim, diretora da consultoria Bienestar Digital.
“Há uma sensação de controle, já que muitos pensam que sabem o suficiente para ganhar.”
De acordo com Fainboim, a função de cajero costuma ser bem-vinda na sociedade argentina, já que muitas vezes representa uma forma de conseguir renda extra para as famílias.
Além dos que anunciam pelas redes sociais, muitos fazem a função de intermediários das apostas para pessoas próximas que têm alguma limitação para jogar legalmente.
Para o presidente da Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL), Plínio Lemos Jorge, a rigidez na regulamentação criada por alguns países pode estimular a clandestinidade.
“Se as exigências forem muito avançadas, o ilegal se sobrepôe ao legal, como nos casos de Portugal e Argentina”, afirma Jorge.
Espaço aberto para golpes
Em um grupo monitorado ao longo de semanas pela reportagem, as denúncias de golpes foram comuns, com apostadores relatando perdas em um ambiente sem nenhuma garantia.
Após depositarem as somas pedidas para “validar os bilhetes”, como os jogos são normalmente chamados neste meio, os apostadores não conseguiam receber seus prêmios.
Em diversos casos, os apostadores alegam que as casas exigiram um depósito de ao menos R$ 100 para que seus créditos pudessem ser retirados, mas, que, mesmo após a transferência, o valor continuava retido.
No Reclame Aqui, páginas de casas não regularizadas e que anunciam com cambistas acumulam reclamações sobre não pagamento.
Um levantamento realizado pela empresa de tecnologia Idwall, em parceria com a Opinion Box, revela que 18% dos apostadores brasileiros já foram vítimas de algum tipo de fraude em plataformas de apostas, o que corresponde a quase 10 milhões de pessoas.
“Há uma ilusão por vários meios, como com a promessa de ganhos falsos”, aponta Jorge.
O presidente da ANJL afirma que o não pagamento de prêmios vem acontecendo com muita frequência, além do uso fraudulento da imagem de casas legalizadas para atrair potenciais vítimas.
“A legitimidade dos sites regularizados está entre os maiores veículos de atração para as casas ilegais”, afirma Jorge.
No Instagram, a página Bet365br conta com 300 mil seguidores. O perfil divulga uma série de sorteios não regularizados, e promete “comissões de até 30%” para cambistas que desejem se ligar a casa, que usa o nome da britânica Bet365, que tem licença para operar no Brasil e é uma das maiores do mundo no setor.
À reportagem, a empresa britânica afirmou que não possui ligação com a conta divulgada no Brasil.
Papel dos influenciadores
Há grande preocupação com perfis promovendo apostas ilegais. Nas redes, figuras famosas apresentando casas não regularizadas e ganhos exorbitantes são uma constante.
Isso está sendo investigado no Senado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Bets no Senado.
Em depoimento à Comissão , o delegado Lucimério Barros Campos mostrou que casas de apostas ilegais e influenciadores mentem nas redes.
Ele foi responsável pela Operação Game Over em Alagoas, realizada a partir de denúncias de pessoas que haviam perdido somas significativas de dinheiro em casas de apostas.
O delegado explicou que bets ilegais usam intermediadores de pagamentos digitais, que recebem as apostas por meio de PIX dos apostadores e repassam para as casas.
No depoimento, ele afirmou que as casas ilegais contratam influenciadores e permitem que eles usem contas falsas no aplicativo de jogo, para simularem que ganharam dinheiro com apostas e divulgarem aos seus seguidores.
Assim, segundo o delegado, o influenciador ganharia dinheiro da casa de apostas para atrair mais apostadores e não apostando na plataforma.
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Na Argentina, no final de 2024, uma grande operação da Justiça acusou 14 influenciadores em razão da promoção dos serviços de cajeros.
“Influenciadores são muito importantes, sendo a chave para a sedução. Se mostram exitosos e ganhando dinheiro, o que é muito tentador”, afirma Fainboim.
Segundo Macorín, deve haver uma evolução para a padronização da publicidade das casas regularizadas, já que “muitos influenciadores estão divulgando atividades ilícitas”.
Na sua visão, um avanço nos critérios sobre o que é permitido e está dentro das conformidades com o jogo regulamentado abre caminho para que os anúncios de apostas mitiguem a promoção de jogos irregulares.
Atualmente, um projeto de lei é analisado na Câmara dos Deputados, e define regras para que influenciadores digitais façam propaganda de apostas on-line e cassinos digitais. A proposta é que uma certificação fique sob a responsabilidade do Ministério da Fazenda, e que inclua treinamento obrigatório sobre os riscos das apostas.
Influenciadores que promoverem apostas sem a devida certificação ou sem esses avisos ficariam sujeitos à multa podendo variar de R$ 10 mil até R$ 1 milhão.
Com a regulamentação e ações mais rigorosas no tema, Lemos aponta que os influenciadores estão mais preocupados em não promover apostas irregulares, mas reforça que ainda existe muita desinformação no meio.
“Eles são facilmente ludibriados, inclusive com apresentação de licenças falsas de regularização por parte das casas ilegais”, afirma.
A ideia também é a de que as plataformas de redes sociais que veicularem publicidade ou promoções de apostas exijam dos influenciadores a certificação válida.
Medidas de combate
O governo Lula afirma que está atento ao tema e buscando reforçar o combate às apostas ilegais.
Desde que a regulamentação entrou em vigor, foram abertos 177 processos em sites e perfis com irregularidades, enquanto cerca de 11 mil endereços de sites clandestinos foram derrubados no país.
Segundo Macorin, quando a secretaria do monitoramento detecta alguma atividade irregular nas redes, pede a derrubada dos perfis à Meta através de um canal exclusivo.
No entanto, ele aponta que não há um monitoramento específico por parte da empresa, que atua mediante denúncias.
Quanto às verificações em espaços mais fechados, como grupos de Whatsapp e Telegram, Macorin reconhece que existem grandes limitações devido à privacidade destas plataformas, já que as conversas ocorrem em ambientes que não são públicos.
Desta forma, a atuação legal fica limitada, já que a fiscalização regular não abrange a possibilidade de infiltração nestes casos.
Lemos defende maior identificação dos meios de pagamento, com um controle maior a partir das transferências financeiras. Além disso, ele acredita que mais casos de punições aos que divulgam apostas ilegais podem ter um caráter didático e que desencorajem novos perfis de fazer o mesmo.
“Assim, as pessoas irão entender que não é brincadeira, que é algo sério e que prejudica famílias”, afirma.
Fonte: G1 Tecnologia
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